A Amazônia no centro dos impactos populacionais gerados pela crise climática
A seca na Amazônia é sintoma de um processo de crise climática que afeta determinados grupos populacionais de forma mais intensa que outros. Uma ampla e desafiadora agenda de pesquisa se descortina para pesquisadores, que têm em suas mãos o potencial de produzir conhecimento capaz de subsidiar estratégias de mitigação.
Seca na comunidade Manaquiri-AM, em outubro de 2024. Foto: Ricardo Stuckert / PR. https://www.flickr.com/photos/palaciodoplanalto/53985334292/in/album-72177720320235838#
A crise climática já impacta diretamente a população de diversas formas, dependendo do tipo de fenômeno climático observado, da escala espacial e temporal de análise, e, claro, de como diferentes grupos populacionais mobilizam recursos para enfrentar as ameaças iminentes. A Amazônia brasileira é um exemplo claro de como a crise climática afeta – e continuará afetando cada vez mais – a dinâmica populacional. Neste texto, são destacados nove desses impactos, observados durante as secas históricas de 2023-2024 na Amazônia Ocidental.
No ano de 2023, a Amazônia enfrentou uma seca sem precedentes, especialmente em sua porção ocidental. Em outubro daquele ano, os níveis de água em Manaus atingiram a marca mais baixa desde 1902. Essa seca veio acompanhada de temperaturas elevadas, intensificando a situação de calamidade (Espinoza et al., 2024).
Essas anomalias estavam ligadas ao fenômeno El Niño, que corresponde ao aquecimento anormal das águas superficiais do Oceano Pacífico Equatorial, ocorrendo em intervalos irregulares, geralmente entre dois e sete anos. Além do El Niño, as mudanças climáticas globais, impulsionadas pelas emissões de gases de efeito estufa, têm intensificado eventos climáticos extremos, como secas e ondas de calor, em diversas partes do mundo, incluindo a Amazônia. Outro fator importante é o desmatamento na região, que impacta diretamente o regime de chuvas. A floresta amazônica desempenha um papel crucial no ciclo hidrológico, com as árvores liberando umidade para a atmosfera por meio da evapotranspiração, ajudando a manter a umidade e a regular as chuvas. O desmatamento e os incêndios florestais reduzem essa capacidade, agravando as secas.
Uma seca prolongada em 2023 pode ter impactos sobre o nível dos rios no ano seguinte. Como a precipitação foi insuficiente, os rios não se recuperaram completamente e, diante de uma nova seca em 2024, a tendência foi que os impactos se tornassem ainda mais graves (Bataier, 2024). E foi exatamente isso que ocorreu. Apesar de ser um fenômeno recente, já é possível observar alguns impactos populacionais diretos ou indiretos das secas extremas na Amazônia, como:
1. Abastecimento de água: A escassez de chuvas provoca a diminuição dos níveis dos rios, que são a principal fonte de água potável para muitas comunidades da Amazônia. Isso pode resultar em dificuldades no acesso à água de qualidade, afetando diretamente a saúde e o bem-estar da população (Ambrosio, 2024; Pereira, 2024).
2. Abastecimento de energia: O Brasil tem mais de 60% de sua matriz energética baseada em hidrelétricas. Algumas dessas usinas, como Belo Monte, Santo Antônio e Jirau, estão localizadas na Amazônia e operam no modelo de "fio d'água", ou seja, sem grandes reservatórios. Isso as torna mais sensíveis às variações no regime de chuvas. Em períodos de seca, como em 2024, a produção dessas hidrelétricas pode ser drasticamente reduzida. A hidrelétrica de Santo Antônio, no rio Madeira, operou a apenas 14% de sua capacidade, e Belo Monte, a segunda maior do Brasil, a 11% (Fucuchima, 2024; Carneiro, 2024). Com a redução da oferta de energia, o país corre o risco de apagões, e a ativação de termelétricas, que são poluentes, pode agravar ainda mais os fenômenos climáticos extremos.
3. Segurança alimentar: A falta de chuvas compromete a agricultura de subsistência, crucial para comunidades ribeirinhas e indígenas. Cultivos tradicionais e a pesca são diretamente impactados pela queda no nível dos rios, prejudicando a fauna aquática e gerando crises alimentares em áreas vulneráveis (Pereira, 2024).
4. Transporte e mobilidade: A rede fluvial é a principal via de transporte na Amazônia. Com os rios em níveis muito baixos, o transporte de pessoas e mercadorias é seriamente afetado, isolando comunidades, dificultando o acesso a serviços essenciais, como saúde e educação, e aumentando o custo de alimentos e combustíveis (Reuters, 2024).
5. Saúde pública: A seca extrema pode aumentar a incidência de doenças associadas à falta de água e ao saneamento inadequado, como diarreia e desidratação. Além disso, a qualidade do ar piora devido às queimadas, aumentando os casos de doenças respiratórias (Pereira, 2023).
6. Incêndios florestais: Com a seca, o risco de incêndios florestais aumenta, afetando diretamente a floresta e as populações que dependem de seus recursos naturais. Além disso, as queimadas contribuem para a degradação ambiental e pioram a qualidade do ar, prejudicando a saúde da população (Castro, 2024).
7. Impactos econômicos: Atividades econômicas como a pesca e o transporte de produtos são gravemente afetadas pela seca. Pequenos produtores, pescadores e extrativistas sofrem com a redução de suas rendas, aumentando a pobreza e a insegurança econômica (Maciel, 2024; Reuters, 2024).
8. Deslocamento e migração: A deterioração das condições de vida pode forçar muitas famílias a migrar, em busca de melhores condições, dentro ou fora da Amazônia. Isso gera tensões sociais nas áreas de destino e agrava a vulnerabilidade dos migrantes (Carbon report, 2024; Spechoto, 2024).
9. Cultura e modo de vida: Populações indígenas e tradicionais têm sua cultura e modo de vida profundamente conectados aos ciclos naturais. A seca extrema afeta rituais, práticas tradicionais e a relação dessas populações com o ambiente, ameaçando sua identidade cultural (Lima, 2024).
Esses impactos demonstram que a seca extrema na Amazônia transcende os problemas ambientais, criando crises humanitárias e socioeconômicas que afetam a sobrevivência e o bem-estar das populações locais. Tais crises tendem a se repetir e intensificar, tornando urgente a necessidade de investigar e mapear esses impactos para planejar estratégias eficazes de mitigação.
Igor Cavallini Johansen.
Professor do Departamento de Demografia da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Pesquisador do Núcleo de Estudos
de População “Elza Berquó” (Nepo/Unicamp).
E-mail: igorcav@unicamp.br
Referências
Ambrosio, N. Manaus pede água. Amazonia Real. Disponível em: https://amazoniareal.com.br/especiais/seca-em-manaus/. Acesso em 23 de outubro de 2024.
Bataier, C. 'Amazônia entrou na estação seca já com déficit de água pela estiagem de 2023', avalia especialista. Brasil de Fato. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2024/09/12/amazonia-entrou-na-estacao-seca-ja-com-deficit-de-agua-pela-estiagem-de-2023-avalia-especialista. Acesso em 23 de outubro de 2024.
Carbon Report. Seca desafia o transporte na Amazônia. Disponível em: https://carbonreport.com.br/seca-desafia-o-transporte-na-amazonia/. Acesso em 23 de outubro de 2024.
Carneiro, T. Com seca severa no rio Xingu, usina de Belo Monte opera com 2 das 18 turbinas no PA. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2024/10/02/com-seca-severa-no-rio-xingu-usina-de-belo-monte-opera-com-2-das-18-turbinas-no-pa-entenda.ghtml. Acesso em 23 de outubro de 2024.
Castro, M. Amazonas registra 21,6 mil queimadas em 2024 e tem o pior índice em 26 anos, aponta Inpe. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2024/09/24/amazonas-registra-216-mil-queimadas-em-2024-e-tem-o-pior-indice-em-26-anos-aponta-inpe.ghtml. Acesso em 23 de outubro de 2024.
Espinoza, J. C., Jimenez, J. C., Marengo, J. A., Schongart, J., Ronchail, J., Lavado-Casimiro, W., & Ribeiro, J. V. M. (2024). The new record of drought and warmth in the Amazon in 2023 related to regional and global climatic features. Scientific Reports, 14(1), 8107.
Fucuchima, L. Hidrelétrica Santo Antônio tem paralisação parcial com seca histórica no rio Madeira. Folha de S. Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/09/hidreletrica-santo-antonio-tem-paralisacao-parcial-com-seca-historica-no-rio-madeira.shtml. Acesso em 23 de outubro de 2024.
Lima, L. Os isolados da seca na Amazônia: o drama de quem não tem água para beber. Amazônia Real. Disponível em: https://amazoniareal.com.br/os-isolados-da-seca/. Acesso em 23 de outubro de 2024.
Maciel, M. Amazonas tem prejuízo de R$ 620 milhões em 2024 na pior seca da história, diz Defesa Civil. GloboNews. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2024/10/05/amazonas-tem-prejuizo-de-r-620-milhoes-em-2024-na-pior-seca-da-historia-diz-defesa-civil.ghtml. Acesso em 23 de outubro de 2024.
Pereira, J. Nove em cada 10 terras indígenas da Amazônia enfrentam seca, levando à falta de alimentos e água. Infoamazonia. Disponível em: https://infoamazonia.org/2024/08/15/nove-em-cada-10-terras-indigenas-da-amazonia-enfrentam-seca-levando-a-falta-de-alimentos-e-agua/. Acesso em 23 de outubro de 2024.
Pererira, J. População do Amazonas enfrenta alta de 28% de doenças diarreicas em meio à seca histórica. Disponível em: https://infoamazonia.org/2023/11/24/populacao-do-amazonas-enfrenta-alta-de-28-de-doencas-diarreicas-em-meio-a-seca-historica/. Acesso em 23 de outubro de 2024.
Reuters. Seca severa na Amazônia dificulta transporte de mercadorias e afeta vida de moradores. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/seca-severa-na-amazonia-dificulta-transporte-de-mercadorias-e-afeta-vida-de-moradores/. Acesso em 23 de outubro de 2024.
Spechoto, C. Governo vê risco de seca isolar Manaus, discute estocar suprimentos e teme pirataria. Estadão. Disponível em: https://www.estadao.com.br/sustentabilidade/governo-ve-risco-de-seca-isolar-manaus-discute-estocar-suprimentos-e-teme-pirataria/. Acesso em 23 de outubro de 2024.
The Brazilian Report. Seca extrema na Amazônia ameaça fornecimento de energia para Manaus. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/09/20/seca-extrema-na-amazonia-ameaca-fornecimento-de-energia-para-manaus.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 23 de outubro de 2024.
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